Cruzava com ela quase todos os dias. Uma de um lado da rua, a outra do outro. Degustava a sua beleza como se bebesse um trago da mais suja e cintilante injustiça. Ela loira, não muito alta. O ventre liso, sempre a mostra. Um jeito de vestir um pouco raro, cuidado, forte, feminino, dentro das possibilidades turvas da sua condição. De vez em quando, observava sua captura na esquina, como uma gata de rua que pula sorrateiramente, tremendo a ponta da cauda, luxuriosa, mas mantém as garras bem presas aos membros da vítima.
Neste dia, no mesmo lado da rua, veio em minha direção. Sempre nos olhávamos, em silêncio. Parou e resolveu romper o véu tênue que nos separava. Eu segurava minha cadela velha, sem dentes, sem olho, quase sem vida. Mas que seguia, firme, o quanto aguentava.
Começou a falar, um pouco agressiva, porém doce. Não pude ver seus olhos. Perguntou se eu segurava um ratão. Contou que quando era mais jovem, e ia na vila comprar loló, via ratos do tamanho de minha cachorrinha, e francamente, sem ofensas, muito parecidos também. Ficou fascinada. Sentia que ela me olhava, percebia minhas reações, e em pouco tempo verificou que eu era mansa, que comera filé-mignon em vez de ração, que era tratada. Miando, nos reconhecemos.
Vi seus dentes quebrados e a bela moldura que a reconfigurava. Quis chorar. Mas não podia. Faltaria com o respeito. Melhor falarmos de cães. Ela me fazia perguntas, confidências. Dizia que os cães eram como os humanos, tinham de tudo, menos AIDS. De repente, vi suas mãos próximas ao meu rosto, afastando meus cabelos da boca, com o cuidado do toque mais delicado que era capaz de produzir. Sorriu, e me pediu um pouco dos meus pelos, pois os seus já estavam ralos.
Como gatas nos afastamos, sem explicações nem culpas, apenas como espécie, sexo e afinidade. Quando ia embora se virou com alegria, exclamando:
- Vai viver mais uns cem anos! Minha mãe diz que estou ficando velha, mas olha! Tem muitas que não duram nem metade do que eu estou durando!
Senti orgulho e amargo na boca. Secretamente, nos desejamos sorte. Secretamente nos admiramos. Eu e a puta, no meio da rua.
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