domingo, 19 de fevereiro de 2012

Os cavaleiros do apocalipse e as lantejoulas da glória


Tudo dera errado no inicio daquele ano. Dizia de modo geral, pois sempre conseguira ver o lado bom dos piores acontecimentos. Uma sequência de presentes cruéis traziam-na ao local que se encontrava naquele instante. O chão da cozinha. Com o olhar embaçado, respirava com dificuldade, dividia o lugar com alguns gatos e a boca com chicletes de nicotina. Não entendia muito bem o que a levara àquele momento.

Lembrava-se, vagamente, de que no dia anterior, já sem suprimentos, precisou sair de casa. As ruas vazias cheiravam a pneu derretido. Do asfalto, uma densa fumaça transparente brotava do chão e acariciava suas canelas. Eram sensuais línguas de demônios, sem umidade nem perdão.

Nunca houvera deitado naquele lugar da casa. A cozinha, um grande retângulo branco, ameaçava desabar sobre sua cabeça. Os fornos eram maioria, e riam e regozijavam de prazer ao contemplarem sua degradação. O forno a gás, naquele caso para gases liquefeitos de petróleo, falava do passado da humanidade, um passado recente, de perfuração e sangue negro. O forno elétrico, gargalhava do presente, dos rios desviados, das horrendas fontes de energia nuclear, dos ares condicionados beirando o blecaute, inúteis, no calor de 40 e poucos graus. O micro-ondas falava do futuro, particularmente de suas hemácias agitadas até a explosão.

Pensou em entrar na geladeira, sua única aliada naquele momento. Seria simples. Retiraria todas as prateleiras, daria para ficar esticada, depois em posição fetal. Esperaria que alguém lhe encontrasse, provavelmente morta pela intoxicação dos alimentos estragados que teria que comer, não pelo frio, pois a pequena geladeira não daria conta de congelar algo do seu tamanho.

Naquele delírio febril, pensou em Jesus. Um Jesus transparente, montado em uma geleira alada, de glória inderretível. Um Jesus picolé cujo sangue que daria de beber, não era vinho, mas algo frozen, qualquer coisa. Resolveu cortar o pensamento. Não podia cometer tal blasfêmia mesmo em estado de desespero. Lembrou que na Europa as pessoas estavam morrendo de frio.

Na passarela, o carnaval rolava solto. Ninguém ouviria seus gritos de pavor. Ninguém perceberia que seu estado, agrário, atrasado, que alimentava uma parte do país, estava sob a mira de uma lente contra o sol. Como formigas, seus habitantes sumiam, pulverizados, um a um. No chão da cozinha, lantejoulas com tapa-sexo giravam sobre a sua cabeça, como fadas do apocalipse. Morreu de sede, de samba e purpurina.